PT/EN

Hoje, precisamente na altura em que os historiadores de arquitectura europeus se mostram cada vez mais interessados no género e no pensamento feminista, torna-se paradoxal que a história feminista da arquitectura americana seja uma chama que luta para se manter acesa. Para além disso, uma vez que muito pouca dessa literatura foi traduzida para os leitores europeus, a riqueza e variedade da sua história é praticamente desconhecida do outro lado do Atlântico. Recentemente, quando perguntei a um grupo de alunos de doutoramento em Arquitectura, no Politécnico de Turim, quem consideravam ser a primeira historiadora feminista da arquitectura, ninguém foi capaz de referir uma única autora que tivesse publicado antes de meados da década de 1980. É, pois, com isso em mente que apresento neste ensaio um breve relato da evolução das correntes principais da história feminista da arquitectura americana, expondo depois algumas reflexões confessamente pessoais sobre temas que entendo merecerem considerações adicionais.
     Nesta evolução podem distinguir-se três fases, reflectindo em parte a própria evolução do pensamento feminista anglo-americano. A primeira fase esteve fortemente ligada à intensa mudança de mentalidades que atingiu os Estados Unidos nos últimos anos da década de 1960. Evoluindo directamente dos movimentos pelos direitos civis e antiguerra, e impulsionado por obras americanas e britânicas como The Feminist Mystique (1963), de Betty Friedan, Sexual Politics (1970), de Kate Millet, e Woman’s Estate (1971), de Juliet Mitchell, o movimento feminista tornou-se rapidamente uma importante força política e cultural, reclamando direitos reprodutivos, igualdade de salários, cuidados infantis e mudanças radicais na construção dos papéis em função do género. O impacto na actividade profissional de arquitectura nos Estados Unidos foi quase imediato. Em meados da década de 1970, o número de mulheres em cursos universitários de Arquitectura passou da presença simbólica de um punhado de estudantes a quase um terço dos alunos; e no final dessa década, um fluxo destas jovens licenciadas iniciou a sua prática.1 Simultaneamente, arquitectas e académicas, muitas vezes no exterior ou nas margens da Academia, começaram a repensar a história da arquitectura moderna. Motivavam-nas dois objectivos principais: reconhecer o papel de arquitectas que tinham sido esquecidas ou subvalorizadas pela história da arquitectura moderna e repensar a natureza e os limites da profissão de forma a abarcar mais amplamente a experiência feminina, em especial na esfera doméstica. Estes dois objectivos caracterizam duas peças fundamentais deste primeiro período: a exposição de Susana Torre Women in American Architecture: A Historic and Contemporary Perspective, patrocinada pela Architectural League of New York, em 1977, e o livro de Dolores Hayden The Grand Domestic Revolution: A History of Feminist Designs for American Homes, Neighborhoods, and Cities, de 1981.
     A exposição com título modesto de Torre produziu um impacto revolucionário, pondo em destaque uma miríade de arquitectas talentosas e inovadoras que tinham ficado à margem tanto da crítica histórica como da contemporânea: Julia Morgan, Eleanor Raymond, Marion Mahony Griffin, Natalie de Blois, Anne Griswold Tyng e Denise Scott Brown. Este conjunto diversificado e eclético questionava a própria ideia de cânone e da linhagem histórica standard de arquitectos heróicos do sexo masculino. Para além disso, a exposição revelou também uma dimensão da história da arquitectura americana que até então fora ignorada: a convergência de um movimento embrionário pelos direitos da mulher nos Estados Unidos, com uma campanha vigorosa por reformas domésticas que se estendeu da década de 1860 à década de 1930, tema explorado em três ensaios de Dolores Hayden e Gwendolyn Wright, no catálogo da exposição.
     Quatro anos mais tarde, o estudo revolucionário de Hayden, The Grand Domestic Revolution, alargava esta pesquisa. Em vez de discutir obras-primas ou figuras canónicas, o livro examinava uma série de esforços experimentais para reestruturar arranjos quotidianos; essas primeiras propostas feministas não só antecipavam muitas das inovações do Movimento Moderno, como sublinhavam igualmente a necessidade de transformações contemporâneas na esfera doméstica. A obra Moralism and Model Home, de Gwendolyn Wright, embora mais circunscrita no seu alcance (centrada em Chicago, nas primeiras décadas do século XX), investigava um território similar. Em ambos os livros não era o estilo que interessava; o importante era a ligação entre o ambiente físico e a forma como vivemos. E, mais uma vez, variadíssimas mulheres que haviam estado ausentes dos estudos tradicionais de arquitectura surgiram em primeiro plano: Catharine Beecher, Melusina Fay Peirce, Charlotte Perkins Gilman, Alice Constance Austin e Christine Frederick. Ainda mais importante era o facto de as novas histórias feministas de Hayden e Wright questionarem os parâmetros da própria arquitectura.
     Enquanto o Movimento Moderno alargara o conceito de arquitectura à habitação das classes trabalhadoras, elas revertiam a equação: a habitação, desenhada ou não por arquitectos, tem de fazer parte da arquitectura – e da sua história. Defendiam também que um entendimento mais detalhado das intersecções das culturas material e doméstica era fundamental para qualquer reforma da própria arquitectura.
     Esta mesma dedicação ardente à mudança social marca a edição especial da revista de arte feminista Heresies, publicado em 1981, sob o título Making Room: Women and Architecture. O processo de criação – colaborante, democrático e consensual (o que também significava reuniões longas e arrastadas, envolvendo negociações sem fim) – era para os participantes tão importante como o conteúdo final. O arrojo e diversidade desta fase do feminismo estão bem patentes neste esforço colectivo; e os alicerces de muitos estudos subsequentes podem encontrar-se aqui, apesar da ingenuidade e utopia de algumas das reivindicações mais revolucionárias. A edição especial incluía o manifesto A Women’s Environmental Rights, de Leslie Weisman, proclamações de uma estética “feminista”, e ensaios sobre tópicos tão variados como questões sociais urbanas, ambientes vernaculares, arquitectas paisagistas, modernistas europeias (Lilly Reich e Eileen Gray) e divisões de género em espaços não “ocidentais”. Peças históricas surgiam entremeadas com relatos sobre práticas alternativas de design e projectos para maternidades, habitação e mesmo um salão de baile comemorativo, dedicado à cantora de blues Bessie Smith. No seu optimismo e activismo, Making Room era semelhante a vários outros projectos desta era, incluindo a exposição Womanhouse (1971-72) do Feminist Art Program, o Woman’s Building, em Los Angeles (1972-1992) e a Women’s School of Planning and Architecture, fundada em 1974.
     No início da década de 1980, esta dedicação activa à transformação social alcançara mesmo instituições tradicionais como a Graduate School of Architecture, Planning and Preservation, da Universidade de Columbia, e a Society of Architectural Historians (SAH); em 1982-83, o programa de arquitectura da Columbia patrocinou uma série de palestras sobre perspectivas feministas do património construído e, em 1985, Elizabeth Grossman organizou a primeira sessão da SAH dedicada às mulheres na arquitectura. Estes acontecimentos e publicações abalaram a fé de uma geração de arquitectas na importância dada pelo establishment da arquitectura da Costa Este às explorações formais abstractas – fossem elas as explorações corbusianas do grupo dos New York Five, ou as inversões maneiristas do Pós-Modernismo historicista. Na História da Arquitectura, trouxeram uma maior atenção para tendências e figuras marginais, um novo interesse na história material e social e a visão de uma esfera académica activamente empenhada nas transformações do presente.
     Contudo, alguns anos mais tarde, o pensamento feminista na arquitectura iniciou uma direcção radicalmente diferente – menos activista e mais teórica, isto é, mais centrada na representação do que na prática. O objectivo era expor e desmantelar as construções opressivas de género no imaginário visual e no discurso. Uma geração ligeiramente mais jovem de arquitectas e teóricas, que perdera os anos impetuosos da queima de soutiens e das comunas, foi profundamente influenciada por pensadoras feministas francesas, em especial por Hélène Cixous, Luce Irigaray e Julia Kristeva. Este grupo – que incluía Jennifer Bloomer, Beatriz Colomina e Catherine Ingraham –  começou a examinar assuntos muito próximos das investigações psico-analíticas e linguísticas, tais como a construção do eu, o regard, a inscrição de oposições binárias e de hierarquias na retórica da arquitectura.2 Esta direcção foi reforçada por um interesse generalizado na teoria pós-estruturalista francesa no seio dos arquitectos da neo-avant-garde (com destaque para Peter Eisenman e Bernard Tschumi), embora poucas mulheres (à excepção de Ingraham) se associassem explicitamente à filosofia derridiana ou ao “Desconstrutivismo” na arquitectura. Neste ponto, o feminismo encontrava-se já firmemente enraizado na Academia, tornando-se moda e ganhando um certo peso – numa época em que, ironicamente, os textos feministas se haviam afastado muito da prática e da política. A escrita tinha-se tornado difícil e obscura, e raramente lida pelos arquitectos profissionais.
     O acontecimento seminal desta segunda fase do feminismo foi, sem dúvida, a conferência Sexuality and Space, organizada em 1990 na Universidade de Princeton, por Beatriz Colomina. Com apenas um terço dos oradores com formação em Arquitectura, a conferência introduziu na crítica de arquitectura um conjunto alargado de perspectivas acerca da construção da sexualidade e do género provenientes de outras áreas – História da Arte, Antropologia, Cinema, Filosofia, Psicanálise e Sociologia. Apenas uma das participantes, Jennifer Bloomer, mostrou projectos seus. Tácteis, confusos e feitos a partir de detritos, aqueles conjuntos idiossincráticos, tal como o estilo retórico de Bloomer, eram inspirados pela écriture féminine de Hélène Cixous e Catherine Clément. Não podiam ter sido mais diferentes dos projectos sérios de inspiração social da edição da Heresies. Conferências e publicações posteriores, tais como Architecture: In Fashion (1994) e White Walls, Designer Dresses (1995), ofereciam análises detalhadas de construções de género na retórica arquitectónica, mostrando como noções como as de ornamento e estrutura estavam fortemente interligadas com as hierarquias de género. E foi nesta altura que entraram em cena os primeiros textos de teóricos do movimento gay e lésbico, em particular “Closets, Clothes disClosure”, de Henry Urbach. Em contraste com os estudos históricos da primeira fase do feminismo, que tendiam para uma orientação materialista e social, e que introduziam material de arquivo desconhecido, esta segunda fase centrou-se na retórica, analisando frequente e minuciosamente os textos de arquitectos canónicos, como Adolf Loos e Le Corbusier, para ganhar novas perspectivas sobre a forma como o género se inscrevia e codificava no pensamento destes autores. Le Corbusier, cujas teorias sobre o urbanismo tinham sido objecto da crítica devastadora de Jane Jacobs no início da década de 1960, era uma vez mais o principal alvo de ataque. É provável que nenhum artigo tenha sido publicado e traduzido tantas vezes quanto “Battle Lines: E.1027, de Colomina, que projecta Eileen Gray como vítima da arrogância, ciúme, e mutilação fantasmal e literal de Le Corbusier.3*
     Em parte como reacção ao tom rarefeito e à abordagem hermenêutica desta fase da crítica, e também devido à sua mensagem repetitiva e estridente (acusações de sexismo e de denegrição do feminino), uma outra corrente começou a ganhar proeminência nos estudos feministas do início da década de 1990. Esta tendência partia da obra de Henri Lefebvre e Michel de Certeau e revisitava a arquitectura das décadas de 1950 e 1960 (os Smithsons, Jane Jacobs, Scott Brown e Venturi), analisando a experiência quotidiana das mulheres e de outros grupos marginalizados em termos de opressão e de possibilidades. O feminismo era agora visto como parte de um fenómeno mais vasto da política de identidade e frequentemente o trabalho das historiadoras feministas, como Margaret Crawford, Zeynep Çelik e Mabel Wilson, era paralelo a outras investigações de identidade, fosse ela étnica, pós-colonial ou racial. De facto, o alcance e variedade deste trabalho, envolvendo questões como o mecenato feminino (Alice Friedman), tecnologia e consumo no pós-guerra (Joan Ockman), experiência corpórea (Deborah Fausch), domesticidade e obras de arte (Sharon Hare) e crítica de arquitectura (Diane Favro, Suzanne Stephens), tornam quase impossível uma só caracterização. A junção destas abordagens diversificadas com o activismo social da primeira fase e a orientação pós-estruturalista-psico-analítica da segunda fase pode ser observada na antologia eclética mas estimulante The Sex of Architecture, editada por Diana Agrest, Patricia Conway e Leslie Weisman, em 1996.4 O livro, com 24 ensaios, pode ser lido como um retrato de grupo virtual do pensamento feminista americano em meados da década de 1990 – retrato esse que transpunha as divisões geracionais. Pouco tempo depois, foram publicadas em catadupa uma série de antologias feministas norte-americanas e britânicas: Architecture and Feminism (1996), The Architect: Reconstructing Her Practice (1996), Desiring Practices: Architecture, Gender and the Interdisciplinary (1996), Design and Feminism: Revisioning Spaces, Places, and Everyday Things (1999) e, o mais recente, Gender Space Architecture (2000).
     Se é um facto que estas obras demonstravam uma aceitação generalizada das preocupações feministas, também é verdade que, de forma mais perturbadora, marcaram um ponto final na visibilidade do feminismo na arquitectura norte-americana.5 A torrente de publicações chegou já ao fim; são poucas as escolas que continuam a leccionar sobre “género e arquitectura”; e os académicos na casa dos 20 ou 30 anos tendem a considerar outros assuntos – a sustentabilidade, a digitalização e a globalização – mais atractivos. Para além das crescentes forças sociais e políticas que parecem militar contra os estudos feministas nos dias de hoje, o seu próprio sucesso ao longo das últimas três décadas pode ter contribuído para o seu declínio. Os nomes de mulheres outrora esquecidas foram ressuscitados, as reputações dos heróis masculinos da arquitectura ficaram um tanto abaladas e os casos mais gritantes de iniquidade sexual e discriminação na profissão foram denunciados se não, mesmo, solucionados. Muito do trabalho académico e da teoria feminista foi integrado em outros estudos, agora parte do mainstream. Contudo, a maioria das críticas e historiadoras de arquitectura feministas rejeitariam qualquer avaliação que considerasse o seu projecto terminado ou a sua viabilidade académica condicionada pela moda. Embora este marasmo seja inquestionavelmente considerado um revés, uma consequência positiva pode ser o facto de este oferecer um período de relativa calma, de afastamento das polémicas acaloradas de uma fase anterior, para reflectir sobre a história feminista e reexaminar os seus métodos e premissas.
     Tive justamente uma dessas oportunidades, como editora e co-autora de uma obra** sobre a designer francesa Charlotte Perriand, a qual é muitas vezes posta ao lado de Eileen Gray e Lilly Reich, como uma das “heroínas” esquecidas do Movimento Moderno europeu, cujos projectos foram eclipsados pelos dos gigantes reconhecidos: Le Corbusier e Mies van der Rohe. Para além das três cadeiras em aço tubular que concebeu com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, como membro da sua firma, o seu trabalho era pouco conhecido, mesmo tendo uma carreira que abarca três quartos de século e se estendeu a locais tão diversos como Brasil, Congo, Inglaterra, França, Japão, Nova Guiné, Suíça e Vietname. O meu interesse inicial em levar a cabo esta obra foi impulsionado por um desejo de desfazer esse “mal” e assegurar que o design inovador de Perriand saísse da sombra altaneira de Le Corbusier. Porém, a natureza frequentemente colaborante do seu trabalho – como o de Lilly Reich, Ray Eames ou Alison Smithson – tornou mais difícil avaliar a sua contribuição. Além disso, tal como muitas arquitectas bem sucedidas da sua geração, Perriand não pretendia ver-se como sendo, antes de tudo, uma designer mulher; nem se identificava especialmente com o movimento feminista em França, o que complicava os esforços de a projectar como “exemplo” para as profissionais mulheres suas contemporâneas. A sua carreira exigia uma leitura mais complexa, do que eu imaginara inicialmente, das formas como o género se interligava com a arquitectura moderna, e levantava várias questões acerca dos pressupostos subjacentes a muitas das leituras feministas da arquitectura moderna.
     O primeiro destes pressupostos é a tendência para ver as mulheres arquitectas como vítimas, cujo talento e contribuições vitais foram suprimidos pelos seus colaboradores ou associados masculinos. Esta interpretação tinha algum valor estratégico nas décadas de 1970 e 1980, alertando os arquitectos para as falhas dos “mestres modernos” e pondo em evidência o tema da discriminação de género. Não há dúvida de que existiam iniquidades inquietantes na profissão, como é bem evidente na muito citada resposta desdenhosa de Le Corbusier a Perriand: “Não se bordam almofadas no meu atelier”, quando ela lhe pediu para aí trabalhar. Contudo, a profunda admiração de Perriand por Le Corbusier, a sua insistência de que ser mulher não interferia com a sua carreira e a satisfação de ver o seu trabalho como parte de um processo de colaboração sugerem que esta caracterização das mulheres projectistas como vítimas, pelo menos no caso de Perriand, tem sido exagerada.
     Neste ponto, poderá ser relevante referir um episódio pessoal. Quando entrevistei Perriand em 1997 e mencionei a fotografia que a mostra reclinada numa chaise-longue com o rosto afastado da câmara, ela respondeu irritada a uma pergunta sobre a interpretação de Beatriz Colomina dessa imagem como representativa da negação por Le Corbusier do seu estatuto de autora e da sua visão criativa.6 Perriand disse-me que foi ela própria quem preparou a fotografia, que foi Pierre Jeanneret quem a tirou e que Le Corbusier não desempenhou papel algum na sua concepção, estando nessa altura, na América do Sul. Ela insistiu que foi sua a ideia de virar a cabeça de forma e dar ênfase à cadeira e não ao seu ocupante; e que foi também sua a decisão de usar aquela imagem na fotomontagem do apartamento modelo que concebeu com Le Corbusier e Jeanneret para o apartamento do Salon d’Automne de 1929. Disse-me, ainda, que também não ficou incomodada pelo facto de a cadeira giratória que ela própria desenhou e exibiu ter sido atribuída em conjunto a Le Corbusier-Jeanneret-Perriand quando a Thonet começou a produzir o mobiliário do grupo em 1930. Perriand viu-o como uma oportunidade de a cadeira ser fabricada e concluiu que teria mais impacto como parte da linha de mobiliário em aço tubular do atelier: alcançar reconhecimento individual como designer era menos importante do que reconhecer a cadeira como parte de uma visão colectiva da vida moderna. Ela sentia-se uma participante em plano de igualdade, com consideráveis possibilidades de escolha e de controlo na sua colaboração com Le Corbusier e Jeanneret.
     Uma segunda questão a considerar é a relação entre a arquitectura moderna e a entrada das mulheres na profissão. Ainda que Le Corbusier esteja longe de ser um herói do feminismo, o seu atelier parece ter sido o local escolhido por várias arquitectas para trabalhar, incluindo Perriand e Stanislavia Nowicki antes da Segunda Guerra Mundial e Edith Schreiber, Blanche Limco e Maria Fenyo imediatamente a seguir. Até que ponto é que a cultura do Movimento Moderno e, em particular, a dedicação de Le Corbusier a novas atitudes e normas sociais ajudou a promover a participação das mulheres na profissão? Será que a aventura de criar algo de novo, o compromisso do Movimento Moderno com os valores colectivos e a sua ênfase na colaboração (por mais paradoxal, dado o autoproclamado papel de artista genial de Le Corbusier) se revelaram especialmente favoráveis às mulheres fortes e independentes? A avaliar pelas descrições de Perriand, ela própria não só se considerava uma igual perante os colegas do sexo masculino, mas também apreciava o seu entusiasmo, camaradagem e respeito. O atelier proporcionava um ambiente em que ela e os colegas, homens e mulheres, podiam crescer e evoluir profissionalmente.
     Em terceiro lugar, as suas exposições de Salão no final da década de 1920 põem em questão a caracterização estereotipada do modernismo enquanto racionalismo instrumental, logo masculino. O que é patente na sua sala de jantar de 1928 e no apartamento modelo de 1929, bem como no movimento mais alargado para a reforma doméstica durante essa década, é que o planeamento científico e o funcionalismo não eram apenas preocupações masculinas mas também componentes importantes da visão feminina da libertação doméstica. Existem muitos estudos feministas dedicados à desmistificação das distinções hierárquicas entre atributos tais como a racionalidade, o funcionalismo e a estrutura (tradicionalmente associados com a verdade masculina) e características tais como o decorativo, a superfluidade e a fantasia (associadas a uma sensibilidade subjectiva mais feminina), e à disputa da subordinação destas últimas. Mas o que se torna claro ao examinar as discussões do período entre as duas guerras sobre gestão doméstica “científica” é que tal dicotomia é demasiado simplista. O movimento pela reforma doméstica contribuiu para a feminização da racionalidade, tal como as mulheres (e a sociedade em geral) foram progressivamente encarando a racionalidade como algo de fundamental para a sua própria identidade. A ideia de que a esfera doméstica podia ser racionalizada e tornada “científica” significava que todas as mulheres – mesmo as que faziam casas – podiam encarar-se e ser encaradas como seres racionais e científicos. Embora raramente reconhecido nesses termos, o funcionalismo e o planeamento racional da arquitectura doméstica moderna estavam de igual forma ligados à identidade feminina. As exposições de Salão de Perriand em 1928 e 1929 põem em causa a caracterização do modernismo e do racionalismo como exclusivamente masculinos.
     Para além disso, estes projectos colocam questões sobre a forma como caracterizamos o feminismo ou o pensamento feminista. Demasiadas vezes, as que entre nós são críticas e historiadoras feministas avaliam a posição histórica da mulher pelos padrões actuais (seja em termos de direitos económicos e políticos individuais ou, numa perspectiva pós-estruturalista, acentuando a fluidez de género e identidade). Porém, para que a luta das mulheres pela emancipação possa ser vista como um fenómeno histórico em evolução é importante examinar esforços anteriores, de “compromisso”, e abordá-los tendo em conta os seus próprios contextos sócio-políticos. A historiadora Karen Offen propôs a expressão “feminismo relacional” para descrever os esforços pioneiros de muitas reformadoras europeias do início do século XX que tentaram melhorar a situação das mulheres enquanto mulheres, chamando a atenção para a natureza distinta das suas contribuições para a sociedade, ao invés de insistir nos direitos do indivíduo, independentemente do sexo. Estas feministas de orientação familiar rejeitavam a imagem oitocentista da sacrificada femme au foyer mas, por acreditarem que existiam diferenças biológicas e culturais entre homens e mulheres, viam ainda a mulher como a primeira responsável pela casa e pelos filhos.7 Em França, antes da publicação em 1949 de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, a divisão sexual do trabalho raramente era vista como opressiva mas antes parte de uma necessária complementaridade dos sexos. Na visão de reformistas domésticas tais como Paulette Bernège e Henriette Cavaignac, e de arquitectos como Perriand e Le Corbusier, a tecnologia moderna e o planeamento científico podiam libertar as mulheres da escravidão doméstica, permitindo-lhes usar o seu tempo de forma mais plena, fosse nos seus papéis de mães e esposas ou empreendendo uma carreira ou dedicando-se a actividades de lazer. É certo que a maioria dos visitantes do Salon d’Automne que em 1929 viram a cozinha de Perriand terão partido do princípio de que uma mulher trabalharia ali, mas as observações dos críticos seus contemporâneos tornam claro que muitos também deram como certo que aquela era uma femme moderne, inventando uma nova identidade para si própria e para a sociedade. 
     Gostaria de ver histórias da arquitectura moderna que explorassem este aparente paradoxo, permitindo-nos incluir esforços diferentes do nosso como parte da história rica e diferenciada da melhoria de condições da mulher. Acredito que um conhecimento mais aprofundado da forma como o género foi sendo construído, mantido e contestado nos ajudaria a fazer face às iniquidades do presente na profissão. Isto significa ir para além das acusações redutoras de sexismo e vitimização e de julgamentos de valor simplistas entre certo e errado, de forma a chegar a uma visão mais ampla e complexa do modernismo – uma visão que abarque as suas dimensões regressiva e progressiva.
     O título deste texto vem do poema “Harlem” (1951), de Langston Hughes, que começa; “O que acontece a um sonho adiado?”|

Tradução: João Carvalhais



* Artigo publicado originalmente em Casabella. Nº 732 (Abr. 2005).

1
Quando iniciei, em 1972, formação “pós-graduada” em arquitectura na Universidade de Princeton, era a única mulher da minha turma. Quando concluí os estudos, em 1975, cerca de metade dos alunos que então iniciavam  eram mulheres. Embora isso fosse verdade em muitos programas de formação pós-graduada em todo o país, havia muitas escolas, especialmente nas “licenciaturas” em arquitectura (B. Arch.), em que a percentagem de estudantes do sexo feminino era muito inferior. As desigualdades noutras dimensões da profissão, contudo, têm persistido. De acordo com estatísticas publicadas na Progressive Architecture em Novembro de 1995, um terço dos estudantes de “licenciatura” e formação “pós-graduada” eram mulheres, 9,1 por cento membros do AIA (Instituto Americano de Arquitectos) e 8,7 por cento membros de corpos docentes das faculdades.

2
Neste contexto, deverá também notar-se o papel de Diana Agrest, que há muito discutia temas psicanalíticos nas suas aulas e a partir do início dos anos 1970 expusera os seus alunos às teorias feministas francesas. Podem ainda incluir-se neste grupo duas académicas de arquitectura, a filósofa Elizabeth Grosz e a classicista Ann Bergren, que participaram com frequência em conferências de arquitectura no início dos anos 1990 e cujos textos tiveram grande influência. Agrest, Grosz e Bergren estão mais próximas geracionalmente das feministas da primeira fase, mas têm uma orientação mais teorética.

3 A primeira versão do artigo de Colomina, “War on Architecture: E.1027”, está publicado em Assemblage. Nº 20 (Apr. 1993), p. 28-29. Número especial Violence, Space editado por Mark Wigley.

* [N.E.] “Uma casa de má fama: E.1027”, publicado neste número do JA, é uma versão actualizada, pela autora, deste texto.

4 Dois ensaios da antologia combinam metodologias materialistas e psicanalíticas: o perspicaz estudo sobre agorafobia e espaço urbano de Costa Meyer e os comentários provocadores de Diana Agrest sobre a cidade e a natureza.

5
Felizmente, na altura em que a visibilidade do feminismo americano parece ter diminuído, os estudos históricos e teóricos feministas britânicos ganharam uma nova vitalidade, evidente em acontecimentos tão recentes como a conferência organizada por Vittoria di Palma, Marina Lathouri e Diana Periton, The Intimate Metropolis: Domesticating the City, Infiltrating the Room, que teve lugar na Architectural Association em Londres, de 30 de Outubro a 1 de Novembro de 2003; as numerosas publicações da Bartlett School, da Universidade de Londres; e obras das historiadoras de arquitectura britânicas Flora Samuel e Tag Gronberg. Conferências recentes em França, Bélgica e Holanda sugerem que isto também pode ser verdade na Europa continental.

**
Mary Mcleod (ed.). Charlotte Perriand: An Art of Living. New York : Harry N. Abrams, 2003. [N. E.]

6
Charlotte Perriand, entrevista com Mary McLeod, 30 de Junho de 1997. Sobre o ensaio de Beatriz Colomina v. “The Split Wall: Domestic Voyeurism” in Colomina (ed.). Sexuality and Space. New York : Princeton Architectural Press, 1992, p. 106-7.

7 Karen Offen. Defining Feminism: A Comparative Historical Approach. Signs. Vol. 14, Nº 1 (Autumn 1988), p. 119-157.


VER ensaio 2 #234
VER ensaio 2 #235
VER ensaio 2 #236
VER ensaio 2 #237
VER ensaio 2 #238
VER ensaio 2 #240
 FOLHEAR REVISTA